Encontrámos a Margarida Marques, coordenadora e gestora de projeto na Rés-do-Chão (membro do nosso GAL Urbano), numa iniciativa pública do “Fórum Urbano” a partilhar a sua experiência no projeto BIP/ZIP “C Bairrista” num painel sobre “o espaço como motor de transformações sociais”. À margem do evento, conversámos com a Margarida, arquiteta de formação que deixou a América Latina, onde estudou e trabalhou, para vir participar na construção de uma Lisboa, passe a redundância, mais participada e regenerada. Como é que melhorar uma praceta em Marvila pode ajudar a melhorar a participação cívica? Foi o que tentámos saber.
Comecemos pela questão-chave do painel em que participaste: Como é que um espaço pode ser um motor de transformações sociais?
Acreditamos que pode ser [transformador]. O que a Filipa [Ramalhete, antropóloga] disse no painel é importante, quando se pensa em “fazer cidade”. Na viragem do século XIX para o século XX havia um mapa que definia categorias de intervenção em várias zonas na cidade [com equipamentos e infraestruturas mais ou menos qualificados consoante a relevância social do espaço público]. Na verdade esse mapa não é publicado hoje em dia, mas é fácil reconhecer [a diferenciação] quando se passeia pela cidade…
Há tipos de cidade(s) diferentes e tipos de moradores com direitos diferentes [no que toca a] espaços qualificados. E nisso não acreditamos. Acreditamos que toda a gente deve ter o mesmo direito, independentemente de onde vive, e que a cidade deve ser ela toda qualificada. Acreditamos que a condição física em que vivemos, os espaços que habitamos condicionam o nosso bem-estar e a nossa qualidade de vida. Portanto, alterar o espaço fisicamente qualifica e altera a imagem que temos dos espaços e de nós próprios…
E nós pertencemos a vários espaços…
É difícil definir o limite. Eu também sou o bairro onde vivo, o país que habito, a família de que faço parte.
Queres partilhar um exemplo de um espaço-motor de transformação na cidade de Lisboa?
Tenho esperança que de facto se construa um espaço público qualificado, verde, nos bairros de Marquês de Abrantes, Alfinetes e Salgadas [Marvila], nos quais os moradores estão a mostrar que isso é uma preocupação. Tenho esperança que possa ser transformador, se as pessoas forem envolvidas no processo. O processo participativo é mais lento e requer mais recursos humanos, o que o torna um bocadinho mais caro, mas acho que a longo prazo compensa.
A duração do programa BIP/ZIP é compaginável com processos participativos deste género?
O tempo é um fator fundamental. Não há processos participativos em doze meses. Pode haver processos em que participam algumas pessoas, mas não acredito que seja um processo participativo. Temos é estado a tentar criar ferramentas que nos possibilitem fazer o processo participativo.
Que atividades levaram a cabo com a comunidade no âmbito do projeto “C Bairrista”?
Começámos a trabalhar lá em setembro de 2017. Tivemos seis, sete meses em que a única coisa que fizemos foi conhecer o território.
É interessante porque as próprias pessoas começam a reconhecer isso – veem como fator diferenciador termos “perdido” tempo a fazer inquéritos a instituições e uma amostra significativa da população, a auscultar, a recolher dados estatísticos, informação bibliográfica, a conhecer os planos de pormenor que são públicos para aquela zona.
Mapearam, por exemplo, pisos térreos não habitacionais na zona…
Além do mapeamento de todos os equipamentos que existem no espaço público – se tem galeria, onde é que há bancos e outros elementos onde as pessoas se podem sentar – também andámos feitos maluquinhos a contabilizar comportamentos no espaço público. Cada espaço foi observado seis vezes, em dois dias de fim de semana, em três horários diferentes por dia. Construímos um mapa [assente em] como é que as pessoas utilizam o espaço público. E cruzámos essa informação com os restantes mapeamentos que tínhamos feito – equipamentos no espaço público, onde é que há entradas de edificado e espaços não habitacionais utilizados e não utilizados. Tentámos perceber de facto como estas coisas todas se cruzam.
Ao mesmo tempo começámos a tentar integrarmo-nos na rede de agentes locais, a participar nas assembleias comunitárias, no grupo comunitário, e a tentar conhecer pessoas que pudessem ser líderes formais ou informais dos bairros.
Em termos de parcerias, contaram com que entidades?
Assumidamente não propusemos nada nos primeiros sete meses. Depois disso começámos a tentar fazer pequenas propostas de intervenção em espaço público. Estivemos a trabalhar em parceria com a GEBALIS, a Biblioteca de Marvila e a Junta de Freguesia [de Marvila] num projeto de pequena escala motivado pelo facto da GELBALIS estar a fazer obras num edificado. Para além do edifício, queria tentar-se promover o uso da praceta que era definida por esses lotes em obras.
Qual o vosso papel específico nesta parceria?
Sermos um bocadinho os mediadores em conjunto com a GEBALIS. Esta parceria a três correu muito bem porque conseguimos chegar aos moradores às vezes de uma forma que essas entidades mais formais não conseguem. Essas entidades conseguem chegar, por outro lado, a outras entidades formais de uma forma que nós não conseguimos.
Como correram as assembleias com os moradores?
Numa primeira assembleia sobre obras estiveram presentes trinta e tal pessoas [de uma zona] onde há 70 casas [a serem reabilitadas]. Começámos aí a perguntar o que as pessoas ambicionavam para aquele espaço da praceta e que capacidade e tempo tinham para trabalhar neste processo.
Que questões vieram à baila?
[O facto dos] bairros não estarem cuidados, os espaços de sombreamento… A questão das crianças é sempre uma preocupação. [Há o desejo de] que o espaço público seja mais qualificado e que haja um lugar para as crianças brincarem. Depois havia uma ideia de festa… O que fizemos a partir daí foi criar um grupo de trabalho com sessões de trabalho periódicas, Numa lógica aberta, [este grupo] estruturava as ideias que eram lançadas. O objetivo era tratar aquelas pessoas como clientes. Os projetos de arquitetura participativos às vezes tendem a ser participativos na execução, ter as pessoas a executarem as propostas, e não necessariamente a desenhar a proposta. Interessava-nos colocá-las na posição de cliente, mesmo não estando a pagar, depois de moradores, que têm responsabilidades para com o espaço que usam.
Verificou-se uma apropriação do espaço público que não existia antes deste processo?
Na prática resultou em ter bancos pintados por um artista do bairro e ter jogos no chão pintados para as crianças. Era esta [a proposta] mais representativa dos desejos das pessoas e foi isso que se materializou. Durante o processo houve pessoas que se envolveram de facto e nesses dias as pessoas começaram a usar muito aquele espaço. Nos últimos meses não tanto, pelo facto de ser inverno, julgo. De qualquer modo, ainda estamos muito aquém do que é suposto chegar com aquele espaço.
Vão continuar no terreno?
O nosso objetivo é continuar nesta praceta e também prolongar isto [o trabalho no terreno]. O mais interessante é que saiu deste processo um grupo de moradores mobilizado que começou a estar presente no grupo comunitário [Quatro Crescente].
Que outros resultados práticos salientarias?
Houve uma proposta para Orçamento Participativo de Lisboa [delineada pela] Junta de Freguesia com esse grupo de moradores, e outra de uma moradora que tem um perfil de liderança e que já estava a trabalhar com as entidades locais – uma de ciclovias e outra de um jardim. Nenhuma das propostas foi aceite para ir a votos. As duas propostas foram apresentadas posteriormente ao Presidente da Câmara em reunião do grupo comunitário e posteriormente em reunião descentralizada da Câmara. Houve resposta positiva por parte do executivo da Câmara em ambos os eventos. Há [ainda] um grupo que nasceu neste processo e a esse grupo juntaram-se pessoas que já estavam a trabalhar no terreno. Há que multiplicar este processo dezenas de vezes e mantê-lo vivo.
Esta é a parte mais desafiante…
Não acho que seja mais difícil do que criá-lo [processo participativo]. Às vezes é mais difícil [ter] recursos humanos para o manter…
E quais vão ser os próximos passos do “C Barrista”?
No ano passado o trabalho do C Bairrista decorreu com os moradores dos lotes Cs. Este ano está a ser desenvolvido um projeto em continuidade que procura começar a envolver também moradores dos lotes As e Bs. Haverá um momento de festa no final de julho e vão ser discutidas outras questões com o grupo de moradores.
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